9 anos, 2 guerras, centenas de milhares de mortos…
E não aprendemos coisa alguma?
10/9/2010, Robert Fisk, The Independent, UK
Tradução de Caia Fittipaldi
O 11/9 nos enlouqueceu todos? Nossa homenagem aos inocentes que morreram há nove anos continua a ser um holocausto de fogo e sangue.
O 11/9 nos enlouqueceu todos? O quanto faz perfeito sentido, de um modo alucinado, enlouquecido, que a apoteose da tempestade de fogo há nove anos seja, hoje, um pregador pirado que ameaça nos ferir com outra tempestade de fogo à moda da queima de livros dos nazistas! E ameaça fazer piras de livros do Corão. Ou a campanha contra uma mesquita a ser construída a dois quarteirões do “marco zero” – como se o 11/9 tivesse sido ataque a cristãos que cultuam Jesus, em vez de ataque contra o ocidente ateu.
Mas, afinal, por que nos surpreender? Basta olhar para outros desses doidos que brotam depois de cada crime contra a humanidade: o semidoido Ahmadinejad; Gaddafi, o pegajoso pós-nuclear; Blair com aquele olho direito de maníaco e George W Bush, com suas prisões negras e torturas e a completamente lunática “guerra ao terror”. E o desprezível que viveu – e talvez ainda viva – numa caverna afegã e as centenas de al-Qaedas que criou, e o mullah Omar caolho – para não falar dos agentes lunáticos das agências de inteligência e da CIA principalmente – que não nos salvaram do 11/9 porque foram muito lentos ou idiotas demais para identificar 19 homens que atacariam os EUA. E lembrem: ainda que o Rev. Terry Jones continue persuadido a desistir de queimar livros do Corão, já há vários outros doidos como ele, de plantão, prontos a assumir seu lugar.
De fato, nesse sombrio 9º aniversário – e deus nos ajude, quando chegar o 10º, ano que vem – o 11/9 parece ter produzido só monstros, nenhuma paz, nenhuma justiça, nenhuma melhor democracia. Destruíram o Iraque – os doidos ocidentais e os doidos da cepa local – e massacraram 100 mil almas, ou 500 mil, ou um milhão; e quem liga? E mataram dezenas de milhares no Afeganistão; e quem liga? E enquanto a praga se espalha pelo Oriente Médio e pelo globo, eles – os pilotos da força aérea e os insurgentes, os fuzileiros e os homens-bomba, as al-Qaedas do Maghreb e do Khalij e do Califato do Iraque e as forças especiais e os garotos do apoio aéreo e os degoladores – degolaram mulheres e crianças e velhos e doentes e jovens e saudáveis, do Indus ao Mediterrâneo, de Bali ao metrô de Londres; que homenagem aos 2.966 inocentes que morreram há nove anos! Em nome daqueles mortos, oferecemos o holocausto que produzimos, de fogo e sangue; e, agora, a sandice do pregador doido de Gainesville.
Essas foram as perdas, é claro. Mas… quem ficou com o lucro? Bem, os mercadores de armas, é claro; e as Boeing e Lockheed Martin e os que vendem mísseis e fabricam aviões-robôs e peças de reposição para os F-16 e os mercenários sanguinários que confiscam terras de muçulmanos em nosso nome. Sobretudo agora, quando já produzimos mais de 100 mil novos inimigos para cada um dos 19 assassinos do 11/9. Os torturadores vivem boa vida, gozando seu sadismo nas prisões negras dos EUA – e seria conveniente que, nesse 9º aniversário, o mundo fosse afinal informado de que há um centro de tortura dos EUA, em pleno funcionamento, na Polônia –, homens (e mulheres, temo) que já aperfeiçoaram as técnicas de sufocamento e afogamento mediante as quais o ocidente guerreia as guerras contemporâneas. E, isso, sem esquecer todos os religiosos fanáticos do mundo, sejam do tipo Bin Laden, ou os barbudos do Talibã, sejam os homens-bomba, sejam pregadores malucos grisalhos de gravata como aquele pregador, o nosso maluco, o de Gainesville.
Mas Deus? Onde entra Deus em tudo isso? Um arquivo de citações sugere que todos os monstros brotados do ou criados no 11/9 são seguidores desse quixotesco redentor. Bin Laden reza a Deus – “que faça dos EUA uma sombra do que é”, como me disse, pessoalmente, em 1997 –, e Bush reza a Deus, e Blair rezava – e ainda reza – a Deus, e todos os matadores muçulmanos e milhões de soldados ocidentais matadores e também o “Doutor” (honorário) “Pastor Terry Jones” e seus 30 (talvez 50, porque, nessa “guerra ao terror” as estatísticas nunca batem) seguidores também rezam a Deus. E o pobre velho Deus, é claro, tem de ouvir todas as rezas cujo coro aumenta durante as guerras. Relembremos as palavras atribuídas a Deus, por poeta de outra geração: “Deus isso, Deus aquilo, e Deus sabe-se lá o quê! Santo Deus! Assim, meu trabalho fica pela metade!” [1] E foi só a Primeira Guerra Mundial!
Há apenas cinco anos – no 5º aniversário dos ataques às torres gêmeas/Pentágono/Pensilvânia – uma aluna perguntou-me, numa conferência numa igreja em Belfast, se o Oriente Médio se beneficiaria por lá haver mais religião. Não!, rugi, na resposta. É preciso menos religião! Deus é assunto de contemplação, não de guerras. Mas – e aqui somos jogados contra os recifes e rochas escondidas que nossos líderes querem que não vejamos, que esqueçamos, que as ponhamos de lado – há, sim, esse inferno de sangue que envolve todo o Oriente Médio. São povos muçulmanos que mantiveram sua fé, enquanto os ocidentais, que os oprimem militarmente, economicamente, culturalmente, socialmente – já perderam qualquer fé. Como é possível?, perguntam-se os muçulmanos. De fato, é soberbamente irônico que o Rev. Jones seja homem de fé, enquanto já não há ninguém à volta dele que tenha qualquer fé. Por isso os nossos livros e documentários jamais falam de muçulmanos versus cristãos, mas de muçulmanos versus “O Ocidente”.
E, claro, há o tabu, o tema de que não se pode falar – o relacionamento entre Israel e os EUA, e o apoio incondicional dos EUA ao roubo de terras, porque Israel rouba terras dos árabes muçulmanos todos os dias –, também está no âmago da crise terrível que assola nossas vidas.
Na edição de The Independent da 6ª-feira, viam-se fotos de uma demonstração no Afeganistão em que os manifestantes gritavam “morte aos EUA”. Mas ao fundo, os mesmos manifestantes carregavam um estandarte negro escrito em dari, com tinta branca. Lá se lia – e nenhum jornal ocidental traduziu – “O regime sionista sanguinário e os líderes ocidentais indiferentes ao sofrimento dos palestinos mais uma vez celebram o ano novo com mais sangue palestino derramado”.
É mensagem de violência terrível – mas prova, mais uma vez, que a guerra em que estamos afundados é disputa também da questão Israel-palestinos. Talvez o “Ocidente” prefira acreditar que os muçulmanos “nos odeiam pelo que somos” ou que odeiem “nossa democracia” (é o que sempre mentiram Bush, Blair e uma horda de políticos mentirosos) – mas o conflito entre Israel e palestinos está no centro da “guerra ao terror”. Porque está. E, porque está, o igualmente vicioso Benjamin Netanyahu, ao reagir às atrocidades do 11/9, disse que ‘o evento’ seria bom para Israel. Israel poderia passar a dizer que, contra os palestinos, lá também se lutava “a guerra ao terror”, e que Arafat – e foi o que disse o hoje semimorto Ariel Sharon – seria “nosso Bin Laden”. Assim, os israelenses puderam atrever-se a dizer que Sderot, sob chuva de mísseis de lata do Hamás, seria “o marco zero israelense”.
Nada disso é verdade. A batalha de Israel contra os palestinos é caricatura fantasmagórica da “guerra do terror” do “Ocidente”, mediante a qual o Ocidente dá apoio ao último projeto colonial do planeta – e aceita os milhões de mortos –, porque as torres gêmeas, o Pentágono e o avião da United voo 93 foram atacados por 19 assassinos árabes há nove anos.
Há uma horrenda ironia no fato de que um dos resultados diretos do 11/9 tenha sido a legião de policiais e agentes e ‘especialistas’ que voaram imediatamente para Israel para aprimorar sua “expertise antiterroristas” com a ajuda de oficiais israelenses que muito provavelmente – nos termos divulgados pela ONU – são criminosos de guerra. Não surpreende que os heróis que fuzilaram o infeliz Jean Charles de Menezes, brasileiro, no metrô de Londres em 2005 estivessem recebendo assessoramento “antiterroristas” dos israelenses.
Ah, sim, já sei o que vão dizer. Que não podemos comparar a ação de terroristas do mal e a coragem de jovens policiais ingleses, homens e mulheres, que defendem vidas inglesas – e sacrificam as próprias vidas – nos fronts da “guerra ao terror”. Não há comparação. Não são “iguais”. “Eles” matam inocentes, porque “eles” são o mal. “Nós” matamos inocentes… por engano. Mas nós sabemos que vamos matar inocentes – aceitamos a evidência de que mataremos inocentes, que nossos atos criarão valas comuns nas quais se enterrarão famílias inteiras dos mais pobres, dos mais fracos, dos mais desamparados.
Por isso inventamos o conceito obsceno de “dano colateral”. Porque se “colateral” significar que aqueles mortos são inocentes, então “colateral” também significaria que os que os assassinam também seriam inocentes. Não queríamos assassiná-los – por mais que sempre soubéssemos que os assassinaríamos. “Colateral” é nossa licença para matar. Essa única palavra faz toda a diferença entre “nós” e “eles”, entre o nosso direito divino de matar e o direito divino de Bin Laden matar. As vítimas, ocultadas como cadáveres “colaterais”, já nem se contam, porque são provas do nosso crime. Talvez lhes tenha doído menos. Talvez morrer por tiro de avião-robô seja morte mais doce, partida mais suave desse vale de lágrimas. Ou, quem sabe, ser cortado ao meio e eviscerado por um míssil AGM-114C Boeing-Lockheed ar-terra doa menos do que voar pelos ares aos pedaços por efeito de uma bomba no acostamento ou de algum cruel homem-bomba que se suicide na rua.
Por isso é que sabemos quantos morreram no 11/9 – 2.966, e o número talvez seja maior – mas nem contamos os mortos que nós matamos. Porque eles – “nossas” vítimas – nem são identificáveis, nem são inocentes, nem são humanos, não têm causas, nem crenças, nem sentimentos; e porque já matamos muito, muito, muito mais gente que Bin Laden e os Talibã e a al-Qaeda.
Aniversários são eventos para jornais e televisões. E parecem ter o mau hábito de se unirem sempre em cenários trágicos. Assim os ingleses comemoram a “Batalha da Bretanha” – episódio cavalheiresco da história dos britânicos – e a “Blitz”, bisavó dos assassinatos em massa, mas símbolo de uma espécie ingênua de coragem –, como lembramos o início de uma guerra que rachou pelo meio a moralidade pública, converteu políticos britânicos em criminosos de guerra, nossos soldados em assassinos e nossos inimigos em heróis da causa contra o Ocidente.
E, ao mesmo tempo em que, nesse tormentoso aniversário, o Rev. Jones prega que se queime um livro intitulado “Corão”, Tony Blair está em campo para vender um livro intitulado “Uma jornada”. Jones disse que o Corão seria “o mal”. Muitos britânicos perguntam-se se o livro de Blair não deveria chamar-se “O Crime”. Não há dúvida de que o 11/9 já virou delírio, se o Rev. Jones consegue atrair a atenção dos Obamas dos Clintons, do Santo Padre e até da ainda mais santa ONU. Aqueles que os deuses querem destruir, os deuses primeiro enlouquecem…
[1] No orig. “God this, God that, and God the other thing. ‘Good God,’ said God, ‘I’ve got my work cut out’. São versos conhecidos na Inglaterra como “a quadrinha da [primeira] Grande Guerra”, de autor desconhecidos, mas atribuídos a J.C. Squire, depois Sir John Squire.
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